top of page

Inexoravelmente

  • por Patrícia Paixão
  • 2 de fev. de 2020
  • 3 min de leitura

Estava com 40 anos. Redondos. Fiz uma sessão de step na academia - aquela coisa que mistura passos coreografados com subida e descida numa pequena plataforma, que parece feita especialmente para acabar com o joelho da pessoa. Logo mais, eu teria uma reunião naquele prédio fantasma da antiga Sudene, na Cidade Universitária, no Recife. E fui. Chegando lá, os elevadores não estavam funcionando. Então subi (e depois desci) doze andares de escada. Essa pequena maratona de subidas e descidas numa mesma manhã fez meu joelho esquerdo inchar e doer muito.

Exames na mão, frente a frente a um ortopedista especialista em joelho, esperei as perguntas dele e, claro, me apressei em dizer “fui atleta de ginástica olímpica, da seleção pernambucana, chegava a treinar seis horas por dia e nunca tive uma lesão na vida...”. Sim, porque eu tenho isso como um trunfo, uma chancela, e digo até quando vou ao dentista, pois é como se fosse até um perdão por ter comido o milho da pipoca que quebrou a obturação. Vai entender...

O médico ouviu tudo, olhou os exames, avaliou o joelho, olhou pra mim e disse o diagnóstico, depois da minha pergunta clássica “o que eu tenho no joelho?”. No que ele respondeu: “A inexorabilidade das primaveras”. Ele falou tão bonito que eu não sabia se ria ou se chorava. Mas nunca a idade fez tanto sentido pra mim - e o peso dela, sobretudo nas subidas e descidas da vida.

Sempre lembro desse episódio não como dramático, mas como risível. O mesmo não ocorreu quando fui a uma dermatologista, que não era a minha antiga, e quebrei a cara, quase literalmente. E fiquei impressionada como algumas dessas especialistas ditas modernosas e blogueiras acabam com a autoestima das mulheres para vender promessas de produtos e serviços ultra-mega-power eficientes para, muitas vezes, transformar a pessoa em outra. Sim, modificando rostos e traços. Sou contra.

A mim foi dito: “Seu rosto precisa de tudo, desde preenchimentos, botox e peelings até sessões não sei de que mais lá”. Não decorei tudo. Uma lista enorme. Mas, juro, eu não perguntei nada disso. Eu queria apenas cremes pra minhas manchinhas de sol no rosto, que meu marido adora e diz que são sardas, mesmo eu dizendo que não são. E queria um sabonete e um hidratante pro rosto também. Sim, também algo pra umas bolinhas de alergia que tenho no braço. Até porque eu aprendi no sobe e desce da vida sobre a inexorabilidade das primaveras e tal. Minhas demandas eram tão, digamos, prosaicas. Poxa, eu não queria deixar aquele consultório com 15 anos de idade...

Saí de lá pensando que não sabia que meu rosto estava tão malcuidado assim. Quase colocava uma placa na testa: “Desculpe o transtorno”. Rebelde de pai e mãe (embora não pareça), saí de lá e rasguei a longa receita e o pergaminho com o orçamento que me garantia o “nirvana estético”. Mas o que ocorre nesses consultórios inescrupulosos é que sua autoestima sai abalada. Eu, que me achava bem pra minha idade, recebi aquele veredito que quase disse: “Só nascendo de novo, amada”.

Imediatamente lembrei de uma amiga que trabalhou comigo numa pesquisa de campo e toda vez que iríamos pra o sol ela dizia “Não posso levar sol porque eu gastei um carro popular no meu rosto”. Era um desespero. Será que você é induzido a gastar muito e muito? Sim. É. Essa onda consumista de padrões de beleza, estética, emagrecimento, e por aí vai, está tudo no mesmo pacote, e há uma indústria se movendo e lucrando por trás do ataque à nossa autoestima.

E me preocupa especialmente por mulheres da área da saúde ajudarem a girar essa roda. Aí penso naquela frase que devia ser um mantra pra todas nós: “Seja a mulher que levanta outras mulheres”. Como isso passa ao largo de tantas áreas profissionais e da própria medicina, um campo vital para ajudar mulheres a se levantarem, se erguerem, se reerguerem. Como faz falta a formação em feminismo nas famílias, nas academias, nas escolas de ensino médio, em tudo.

Voltei pra minha antiga dermatologista. “Seu rosto está ótimo! Precisamos só cuidar disso aqui e ali. Vamos cuidar?”. Vamos! Seja a mulher que levanta outras mulheres. E, sinceramente, olho no meu entorno de grandes mulheres, miro em ícones que admiro tanto da escrita, da música, do cinema, e vejo que somos mesmo inexoravelmente iguais a vinho e ficamos melhores com o passar do tempo. Para muito além da estética. Sigamos de mãos dadas, manas, nas subidas e descidas da vida. Só depende de nós.

*Imagem extraída do instagram de ilustrações @flowsofly.

 
 
 

Comentarios


bottom of page